Criei um personagem diferente uma noite destas.
Filho da diáspora e da impermanência, Ruca...
Frente a uma máquina de café.
Máquina de café 9/8/2017
Relato mental de Ruca, professor de português desempregado, alto, magro, cara de quem sofreu muito dando aulas em turmas barulhentas, está sentado numa cadeira de plástico no consulado do Brasil, no Porto, são 11 da manhã:
(Ruca tomou a medicação...)
"Está uma multidão aqui, cheia de vida, com olhares e corpos em movimento.
Agrupamo-nos neste lugar, neste ajuntamento de auras, de vozes e palavras murmúrio, e vemos o tempo passar, linearmente, o tempo passar, com os segundos correndo maquinais nos ecrãs eletrónicos demasiado verdes e barulhentos e burocráticos...
O que faço aqui?
Vida estranha esta…
Dentro em breve serei meio cidadão brasileiro com direito a pagar impostos.
Junto os meus papeis, a minha paciência e o que Deus quiser nesta campanha pelos documentos oficializados.
Tudo à minha volta são sons desconexos, bebés e crianças gritando, gente com os corpos domesticados olhando para telemóveis que fazem plim e subitamente, subitamente parece que nos fazem sentir aqui como pratos em micro-ondas envoltos numa memória de Estado que nos cobre como uma nuvem.
Falamos a mesma língua, pensamos simbolicamente, queremos todos a felicidade, odiamos todos o sofrimento.
Penso que isto é o que nos faz estar aqui, tentando ser legais e “legais”.
As pessoas são desejos desconexos, desejos que se amontoam como nuvens em volta dos seus corpos.
Irregulares, soltos e fragmentados, os desejos estão todos envoltos num caos de sala de espera com a turba do Brasil a açucarar o consulado do Porto.
Dentro de mim, com a minha armadura e a minha viseira bem visíveis, olho em redor e nada entendo.
Nada disto compreendo.
Pessoas legalizando-se numa máquina burocrática que nos quer números contáveis, papéis certos e ordem civil.
E fico a pensar, na ordem civil e na festa que isto é:
Meio dia e meia e barulho infernal na sala de espera do consulado brasileiro no Porto.
À espera de vez, desperdiçando tempo de alma aguardando, envolto numa nuvem açucarada de barulhos, enquanto os espíritos em volta algaraviam coisas por entre intenções, anjos da guarda e o ecrã eletrónico fazendo plim de forma esquizofrénica.
Ordenam-nos todos aqui, entre cadeiras, números e vagas e não entendo.
Simplesmente não entendo...
Não entendo e não vejo.
Onde está a parte humana por estes lados...
Para a semana tenho consulta no psicanalista.
A psicanálise é tão revolucionária e resolve tanto os meus problemas que o máximo que o meu médico me faz é dizer que devo ser eu próprio.
Isso já eu era antes de pagar os 100 euros...
Malditos fazedores de sombras...
Continuo escravo na caverna de Platão, atado a esta cadeira de plástico olhando as desgraças da televisão da sala de espera que derrama os seus choros diários enquanto vende detergentes da louça por entre sorrisos nas imagens.
E fico parado a escutar.
O plim da máquina das senhas.
E fico parado a escutar...
As pessoas em volta.
Ali fala-se de receitas de cozinha e leite condensado, aqui coisas da vizinha e silabas que não compreendo, sílabas que se perdem no espaço cósmico.
Uma senhora anda com um carrinho de bebé de um lado para o outro tentando adormecer o menino.
O ecrã luminoso faz plim violentamente e insistentemente como se estivéssemos num Wall Street brasileiro no Porto à espera de vagas por entre sorrisos, blá-blá e a língua portuguesa que nos envolve como uma nuvem açucarada.
Não sei de nada aqui, apenas existo.
Escrevo e escrevo as minhas letras escritas com tinta azul numa caneta bic de plástico.
Fazendo um diário que regista momentaneamente o que aqui sou.
A geração mais nova está com telemóveis, escreve coisas e joga joguinhos rápidos.
As mulheres, de brincos enormes, são plácidas, calmas e silenciosas respirando suavidades.
A máquina de café lá ao fundo está repleta de sequiosos por cafeína.
O café é a bebida capitalista por excelência.
Esta bebida dá energia e faz render o máximo em pouco tempo para depois se amassar num copo de plástico entre as mãos e ser jogada para o lixo.
Tal e qual um contratado.
A mulher continua a andar com o carrinho para a frente e para trás tentando acalmar o menino junto à máquina de café.
Daqui a uns anos o menino será outro a beber o café para entrar na máquina capitalista.
Será rápido, enérgico, esgotado com eficiências e depois será amassado como um copo de plástico pelo patrão e jogado no lixo.
Vogará em repartições como esta, em salas de espera como esta, à espera de ter vez para ser um número com direito a dinheiro.
Depois, sempre à procura do vil metal, o menino ficará junto a máquinas de café, gastará tudo o que é em café e na tentativa de não ser amassado num copo de plástico pelo patrão, mas será jogado no lixo, repetidamente no lixo, e o sistema repetirá sempre as mesmas operações, sempre as mesmas operações, num samsara previsível e calculado.
O pai, velhinho, lhe dirá:
"Tudo tem o seu tempo filho…"
A mãe, velhinha, sossegando o menino no carro de bebé da nora (demasiado ocupada a beber café) empurrará o neto para trás e para a frente no carrinho, adormecerá o menino em frente à máquina de café, esperando a vez para mais uma rodada.
E de geração em geração, o dinheiro vem junto com o sabor do café que se bebe nos lábios, e com energia trabalharemos todos juntos rumo a uma sociedade melhor, até nos esmagarem a todos como copos de plástico usados e nos jogarem no lixo reciclável.
E quem sabe verdadeiramente das coisas não é dependente disto, nem do café nem dos números com que nos rotularam.
Vai para as ilhas do Sul e lá fica a conviver com o brilho do Sol e as palmeiras ululantes estendendo-se em praias de cetim.
Sim.
Era onde eu devia estar em que vez de aqui permanecer envelhecendo à espera de vez.
Sou o 67 e ainda está no 34.
Aguardo como um estóico duro, como uma estátua de pedra.
Aqui.
Agora.
Forever o que vier virá.
E o que vier será apenas um brilho das estrelas refletindo neste mundo físico que me sustenta o corpo mas não vê os meus desejos, as minhas ideias, a minha vontade.
Oculto cavaleiro sou sentado numa destas cadeiras de plástico com que nos numeram a vez para sermos números num sistema demasiado burocratizado para ter sentido.
Estamos envoltos numa nuvem de açúcar que fala português, que tem a língua portuguesa como som.
Meus irmãos e irmãs que a inconsciência separou.
A Providência fez-nos estar aqui, à espera de vez, à espera de sermos legais e numerados.
Estamos retalhados pelos lugares e pelo tempo, viemos ter a este ajuntamento, juntos, às 12:53 deste dia, que é apenas mais um dia com claridade algures no Verão do Porto indefinível.
E as árvores lá fora na rotunda da Boavista murmuram coisas ao vento do outro lado da vidraça.
E eu não sei o que está para lá da máquina de café…
Gostava de conceber um sistema onde todos fossemos felizes e irmanados na construção de um mundo superior, de algo melhor do que esta hora presa a este lugar.
Estamos todos à espera de fazê-lo…
Talvez um dia isso seja possível, enquanto as árvores sussurram murmúrios ao vento na verde tarde, na tarde envolta em rotunda da Boavista e na luz batendo na estátua do leão e da águia, tudo isto entrecruzando-se com os murmúrios da rua agitada por automóveis, gente dispersa, roupas e ideias soltas…
Está sol em Agosto aqui sob as estrelas além deste límpido céu azul.
Sou o 67 e ainda está no 35.
Espero a vez para ser atendido e ter direito a um cartão e a um número que me vai fazer ser contribuinte dos cofres do Brasil.
Aqui, meio Porto meio Rio de Janeiro, meio corpo meio alma de aventureiro, pronto para largar amarras de um país que me cresceu 33 anos…
Que subiu como árvores esplendorosamente bem crescidas no meu interior e me fez luso com direito a falar sons que flutuam da minha boca como sendo a língua portuguesa neste espaço, onde apenas somos humanos, vendo as árvores balouçando ao vento os verdes ramos murmurando o meu destino além da máquina de café.
Estou com fome de vida e sede de liberdade.
Imerso nesta sala de espera, dentro de uma nuvem invisível açucarada onde se ouve falar o português em vozes doces e aflautadas dizendo cidades, famílias, casas, fofocas rápidas que se esquecem enquanto se coça o queixo e não se faz absolutamente nada…
E ver todo o esforço destes corpos desejando durante anos e anos como incêndios e que neste dia chegaram até aqui, perto de mim, nesta sala de espera, à espera de vez, enquanto as árvores suspiram nadas ao vento e as pessoas olham a máquina de café dóceis, nesta tarde sem som de Agosto, trígono Lua com Mercúrio e Vénus com bons aspectos.
Momento bom para escrever…
E o mundo é uma sala de espelhos, é uma câmara de som e um lago de águas paradas refletindo o céu.
E quem aqui sou eu?
Continuo à espera.
E a multidão cheia de vida acalmou em meu redor.
Os miúdos brincam livres em espaço brasileiro dentro da cidade do Porto em Portugal dentro do mundo.
E dizem o futuro por monossílabos ainda de chupeta na boca.
São os novos bandeirantes de um mundo de destroços.
Olho em redor.
Como alguém que de súbito sabe a verdade.
E dirijo-me à máquina de café.
Voluntariamente…
E bebo o café todo de um trago.
E sabe-me a Brasil, com passagem por Portugal segurando um copo de plástico da China vindo de uma máquina feita na Alemanha.
E nada mais sei.
A não ser.
Que nada sei.
Infinitamente…
Junto a esta máquina de café e a esta multidão.
Que de súbito a meus olhos neste dia apareceu.
Bem à minha frente.
Minha gente…
Quem sou eu?
E o que é esta máquina de café que nos traga infinitamente?..."
Marco Oliveira