Telemóvel – Poema
digital
O poeta subiu ao
palco vestido de negro.
As pessoas em redor
fumavam e diziam coisas inaudíveis por entre o bater dos cubos de gelo nos
copos de vidro.
De olhos concentrados
em algo sério, o poeta, segurando um papel na mão, isto começou a dizer:
“Telemóvel
Nanotecnologia do
sentir
Fiquei pequenino,
teclando com os dedos o meu destino
Viajei para
paraísos mentais lendo informações residuais
E fiquei mais
paciente…
Penso que sei mais
do mundo que cabe na minha mão
Mas o mundo é
gigante e há mais infinitos na minha imaginação
Toquei com os dedos
tudo o que quis
Satisfiz a minha
curiosidade como um gato preto que quer conhecer o mundo
E nada soube…
A não ser a conta da
internet que paguei no fim do mês
E os nadas que
troquei com a malta no Facebook
Foram imagens de
mim ao espelho
Numa espécie de
confessionário do ordinário
Mostrei-me apenas a
mim próprio
E fui condenado a
viver como um solipsista no opróbrio
De pensar ter
O mundo na minha
mão clicando as teclas do poder
Para então saber
O valor do tempo
que vi perder
E quando morrer,
tudo que o soube foi apenas clicar nano-verdades
Que me venderam
mais a conta do telemóvel
Fui um robot sem
sonhos
E quando sonhava
estava no Matrix
Numa máquina que me
fazia sonhar
E desperdicei o meu
corpo, o meu nascimento e a minha vida
A trabalhar para
pagar a conta da minha curiosidade incontida
Que cabia na palma
da minha mão
E as coisas que
cliquei eram dos donos das máquinas do cifrão
Que me faziam
sonhar e clicar e desejar
Em tantos dias sem
fim que já nem me lembro
Onde em vez de
viver
Fui clicando a vida
E fiquei retalhado,
amordaçado e sem mim
Fragmentado em dias
mal vividos misturados com tanta informação
Inútil, pois às
vezes nem sei fazer contas com os dedos que tenho na minha mão…
Telemóvel
A ti dedico odes
sem fim
As numerosas odes
com que dedilho
Pelas teclas a
minha curiosidade feita sarilho
És o sedativo onde
esqueço os meus problemas
Um sistema operativo
que me resolve os meus dilemas
Eras tudo
Mas tudo mais não é
Do que a vida
bebida como um café
Rápida, veloz e
inútil
Como quando se
perde a fé
E se batalha mesmo
assim até ao fim
Pela autoimagem de
mim
Solipsismo virtual
Doida realidade
ilusional
Teclo em ti
O meu desejo
De deixar de ser
Infinitesimal
No meio da multidão
Da virtual gente
que aspira, fala e deseja
E os sons que saem
de ti são iguais aos que faz uma mosca vareja…
Telemóvel
És apenas sombra de
plástico
Um objeto que na
morte se deixa…
Para onde vou
depois
Deste circo a
arder?
Toda a gente é
igual a mim no morrer
Ao fim de três dias
o corpo de toda a gente fica a feder…
O telemóvel está a
tocar
E não vou atender…
Digam que fui
viajar
Para as ilhas do
Sul
Telemóvel
És débil na tarde
mole
Onde toda e gente em
preguiça se consome
E de falar toda a
gente está com fome
Clicando as teclas
do fim do anonimato…
Duas coisas nos
iludem neste mundo aprisionado
O desejo de
reconhecimento
E o medo de ser
anónimo…
Telemóvel
Para ti, de ti, e a
partir de agora e para sempre
Serei o antónimo…”
O publico no bar
bate palmas.
Duas loiras gritam
o nome do poeta e sorriem todos.
O poeta faz uma
vénia e sai do palco por entre os aplausos…
Ouve-se depois uma
voz bem sonora que falava de um microfone:
“O próximo concorrente
chama-se Face, Face Book…
Vai passear a sua
cara para nós.
Palmas para o Face!”
E ouviram-se palmas
e alguns gritinhos…
Ouvi ainda a voz
dele antes de sair pela porta.
Dizendo numa voz teatral:
“E a tarde passa
breveDizendo numa voz teatral:
E o vento é feito
de desejos
Voa minha vida breve
O brilho do sol
dá-me eternos beijos…”
A noite estava fria
e eu queria sair dali.
Querua ir para um sítio
com classe…
Apertei a gola da gabardine
com os dedos junto ao pescoço, chamei um táxi e fui…
- FIM -
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