domingo, 12 de novembro de 2017

"Slam" livre...







Telemóvel – Poema digital



O poeta subiu ao palco vestido de negro.

As pessoas em redor fumavam e diziam coisas inaudíveis por entre o bater dos cubos de gelo nos copos de vidro.

De olhos concentrados em algo sério, o poeta, segurando um papel na mão, isto começou a dizer:

“Telemóvel

Nanotecnologia do sentir

Fiquei pequenino, teclando com os dedos o meu destino

Viajei para paraísos mentais lendo informações residuais

E fiquei mais paciente…

Penso que sei mais do mundo que cabe na minha mão

Mas o mundo é gigante e há mais infinitos na minha imaginação

Toquei com os dedos tudo o que quis

Satisfiz a minha curiosidade como um gato preto que quer conhecer o mundo

E nada soube…

A não ser a conta da internet que paguei no fim do mês

E os nadas que troquei com a malta no Facebook

Foram imagens de mim ao espelho

Numa espécie de confessionário do ordinário

Mostrei-me apenas a mim próprio

E fui condenado a viver como um solipsista no opróbrio

De pensar ter

O mundo na minha mão clicando as teclas do poder

Para então saber

O valor do tempo que vi perder

E quando morrer, tudo que o soube foi apenas clicar nano-verdades

Que me venderam mais a conta do telemóvel

Fui um robot sem sonhos

E quando sonhava estava no Matrix

Numa máquina que me fazia sonhar

E desperdicei o meu corpo, o meu nascimento e a minha vida

A trabalhar para pagar a conta da minha curiosidade incontida

Que cabia na palma da minha mão

E as coisas que cliquei eram dos donos das máquinas do cifrão

Que me faziam sonhar e clicar e desejar

Em tantos dias sem fim que já nem me lembro

Onde em vez de viver

Fui clicando a vida

E fiquei retalhado, amordaçado e sem mim

Fragmentado em dias mal vividos misturados com tanta informação

Inútil, pois às vezes nem sei fazer contas com os dedos que tenho na minha mão…

Telemóvel

A ti dedico odes sem fim

As numerosas odes com que dedilho

Pelas teclas a minha curiosidade feita sarilho

És o sedativo onde esqueço os meus problemas

Um sistema operativo que me resolve os meus dilemas

Eras tudo

Mas tudo mais não é

Do que a vida bebida como um café

Rápida, veloz e inútil

Como quando se perde a fé

E se batalha mesmo assim até ao fim

Pela autoimagem de mim

Solipsismo virtual

Doida realidade ilusional

Teclo em ti

O meu desejo

De deixar de ser

Infinitesimal

No meio da multidão

Da virtual gente que aspira, fala e deseja

E os sons que saem de ti são iguais aos que faz uma mosca vareja…

Telemóvel

És apenas sombra de plástico

Um objeto que na morte se deixa…

Para onde vou depois

Deste circo a arder?

Toda a gente é igual a mim no morrer

Ao fim de três dias o corpo de toda a gente fica a feder…

O telemóvel está a tocar

E não vou atender…

Digam que fui viajar

Para as ilhas do Sul

Telemóvel

És débil na tarde mole

Onde toda e gente em preguiça se consome

E de falar toda a gente está com fome

Clicando as teclas do fim do anonimato…

Duas coisas nos iludem neste mundo aprisionado

O desejo de reconhecimento

E o medo de ser anónimo…

Telemóvel

Para ti, de ti, e a partir de agora e para sempre

Serei o antónimo…”



O publico no bar bate palmas.

Duas loiras gritam o nome do poeta e sorriem todos.

O poeta faz uma vénia e sai do palco por entre os aplausos…

Ouve-se depois uma voz bem sonora que falava de um microfone:

“O próximo concorrente chama-se Face, Face Book…

Vai passear a sua cara para nós.

Palmas para o Face!”

E ouviram-se palmas e alguns gritinhos…

Ouvi ainda a voz dele antes de sair pela porta.

Dizendo numa voz teatral:

“E a tarde passa breve

E o vento é feito de desejos

Voa minha vida breve

O brilho do sol dá-me eternos beijos…”

A noite estava fria e eu queria sair dali.

Querua ir para um sítio com classe…

Apertei a gola da gabardine com os dedos junto ao pescoço, chamei um táxi e fui…

- FIM  -




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