sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

POESIA (E POETAS) HOLOSISTA QUE NOS INSPIRA: "SÚMULA" DE TIAGO MOITA


SÚMULA

Esta é a minha entrega...

Habito num aquário 
com corpo e alma de cidade
as paredes são escamas de peixe
mudando ao sabor
das estações dos poemas.

Cada uma delas transporta luas
em quarto minguante
e lágrimas fundidas 
em fogo moído

Não existe zero nem infinito 
no intervalo do existir
apenas ciclos fugazes 
de substâncias e experiências
cada um vive na cornucópia 
que montou no silêncio obtuso
das sete idades

Nada 
é um relógio parado
e obsoleto pela voragem dos anos
porque cada passo que dou
é uma primavera de mistérios
despidos de legendas 
e notas de rodapé

Cada Ser é um fogo por lavrar
no labirinto da alma
e esse fogo é fonte e força motriz
de todos os meus acidentes 
e circunstâncias

Vivo a plenitude desse fogo
em diferentes direcções
sem recurso a sextantes
e murmúrios primários
nas quatro paredes deste aquário
escolho aprender o sentido das feridas
em cada retrato
em cada objecto
ou em cada lago da minha infância

Todo o meu corpo estremece 
numa erupção latejante 
de sensações 
e sentidos
perante o êxtase precoce da palavra 
que expande o meu universo
como um gota de tinta 
violando a virgindade 
de uma página

Bebo o sabor de cada sorriso
cada vez que incendeio um desejo
com o pensamento

Não sou mais servo da mente
nem escravo do ego
certo errado bom mau
são miragens de palavras 
levadas pelo bulício do vento

Cada ponte que construo
é um muro que derrubo
num cemitério de sombras
cada porta que fecho
é uma janela que abro 
para uma epopeia em branco
no universo de mim

Por vezes chovem lanternas e espinhos
por vezes tudo sangra e canta
perante a menstruação da seiva
e os relógios teimam não trabalhar
contra a natureza do tempo
e a profundidade dos livros

Mas não importa...
nada mais importa 
no espaço entre quem fui
sou
e desejo ser

porque sou a expressão viva e bruxuleante
da vida que escolhi
matéria bruta e obra-prima 
em permanente transformação

Rosto do que fui
espelho do que sou
e expectativa 
de tudo o que posso 
vir a ser.

TIAGO MOITA
"Post Mortem e Outros Uivos"
WorldArtFriends Editora
2012

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